O bigode / A colônia de férias

O bigode & A colônia de fériasDuas novelas em um volume, O bigode A colônia de férias não parecem, na leitura da orelha, histórias relacionadas. Temi que tivessem jogado duas histórias do autor, Emmanuel Carrère, em um único volume. Após a leitura, entretanto, quaisquer dúvidas são dissipadas: há uma unidade temática em ambas. É perceptível que a paranoia, o trauma, a descida em um monólogo interno de um personagem desamparado, são elementos que formam entre os dois uma espécie de união que funciona muito bem.

São histórias de terror e suspense psicológicos, voltadas para a interioridade de seus protagonistas. Angústia definiu a minha experiência com O bigode. A proposta da primeira novela, curiosíssima, se transforma em um conto de “dúvida” até o seu medonho desfecho. Começa com a pergunta do protagonista à sua esposa, Agnès: “o que você diria se eu raspasse o bigode?” Ele cuida de seu bigode há dez anos, desde antes de se conhecerem. Em chiste, ela lhe responde que seria bacana, e ele, sem levar muito a sério, desafia sua piada ao remover de fato o bigode. O problema é que, ao o ver, Agnès não exibe reação alguma. Ao ser questionada, está confusa: ele nunca usou pelo facial algum.

Ninguém mais vê seu bigode. A partir daí o protagonista envereda mil possíveis explicações: estaria sua esposa e seus amigos malucos? Conspirando para deixá-lo insano, para negar as verdades incontestáveis da sua vida? Quando a polêmica da ausência do bigode — do qual ninguém mais se lembra — começa a invadir o resto dos fatos do que viveu, não resta mais um referencial seguro do que é real e do que não é. Ele foi ou não à ilha de Java? Tem ou não dois melhores amigos?

Agnès diz que ele está louco, que nunca fizeram nenhuma dessas coisas, e que nunca teve um bigode. A própria realidade e a memória começam a se desfarelar. Estamos lendo a narrativa agora, mas e se daqui a dez páginas alguém disser ao nosso protagonista que o que acabamos de ler jamais aconteceu? Nesse enredo de gaslighting, não temos mais ideia do que é confiável. E, ao mesmo tempo, jamais podemos ter certeza do que aflige o mundo ou o personagem; se ele está realmente louco, ou se o mundo está lhe pregando uma peça colossal.

Carrère monta um temível mas divertido monólogo interno, reproduzindo mesmo na terceira pessoa o discurso e os cacoetes de um homem carcomido pela paranoia, ciúmes e suspeita. E quando nós mesmos perdemos os parâmetros do que aconteceu de verdade, transportamo-nos para esta dimensão de não sabermos no que confiar. O leitor transfigura-se em um símile do próprio personagem, e se cria uma experiência medonha na qual começamos a temer que, em qualquer momento, com uma mera mudança trivial como a remoção de um bigode, o próprio tecido da realidade se volte contra nós, brincando com a existência de nossas memórias e entes queridos.

Enquanto trabalhava, mordiscando uma canta hidrográfica, lutava contra a tentação de fazer pelo menos um teste com alguém que o conhecesse bem, fazer a pergunta pela última vez, antes de sepultá-la, ou então partir para o psiquiatra. Pois a questão persistiria independentemente da resposta. Ou a cobaia respondia que não, que ele nunca usara bigode, e isso confirmava não apenas que ele padecia de um surto de loucura, como ainda levava tal loucura ao conhecimento de uma pessoa suplementar. […] Ou então o nterlocutor respondia qu enaturalmente, sempre o conhecera de bigode, que pergunta incomum, e então fatalmente Agnès seria culpada Ou estaria louca. Não, culpada, uma vez que tivera de aliciar os demais. O que por sinal dava na mesma, pois essa culpa, em mentira tão exacerbada, tão metódica, às raias da conspiração, presumia uma forma de loucura. (p. 49)

Já em A colônia de férias, o gênero muda mas a paranoia continua: o jovem Nicolas vai contra sua vontade para uma colônia de férias de esqui. Ele é aquele menino ostracizado por ter pais superprotetores: é um pouquinho patético, desejando sempre a proteção alheia, e não quer encarar as dificuldades da vida. Prefere se manter em um casulo fechado. Enquanto o resto da turma foi de ônibus, seu pai lhe entrega pessoalmente de carro na colônia. E o pior, vai embora e leva a mochila do menino junto, sem querer. Nicolas, desamparado, sem suas roupas e pertences pessoais, deve passar aqueles dias com artefatos improvisados comprados no mercado próximo com o monitor.

Por que seu pai não volta? Cogita a sua morte, um acidente. Ele simplesmente esqueceu? Mais tarde, o mais temido dos colegas lhe empresta o pijama. O que ele quer com Nicolas? Será uma espécie de teste? A insegurança de uma criança que imagina seus traumas. Nicolas está a toda hora pensando no que de mau pode acontecer, e em seus resultados: ser alvo de pena e misericórdia, o que lhe convém; a sensação de segurança que provém de uma inabilidade de ser responsabilizado pela própria vida. Seu suspense e medo começam a desenrolar-se de forma cada vez mais (in)tensa quando uma criança da vila próxima desaparece.

Com um desfecho um pouco previsível, mas muito bem executado, temos de ver o menino Nicolas encarar sua vívida imaginação. Tanto nesse quanto em O bigode, vemos questões de pessoas levemente fora da realidade. Têm um outro viés de visão do que existe, uma perspectiva insegura de tudo. Em  Colônia, mais uma vez temos o monólogo interno, dessa vez infantil. A diferença muda o tom da história para algo mais leve de se ler, ainda que igualmente climático. O estilo do autor não dá margem para a calmaria: a tensão que Nicolas sente em todas as possibilidades de um trauma ainda irrealizado toca o leitor. Particularmente, como uma ex-criança que vivia imaginando o pior de todas as situações, senti uma boa representação, quase nostálgica, de um sentimento de medo que sempre imaginamos mas que continuamos torcendo para que não se concretize.

Deitado bem próximo à janela, sob a calefação opressiva, Nicolas ouvia o motor roncar cada vez mais alto, cada vez mais perto. Via o carro aproximar-se por baixo, como no mecânico quando o subiam no guindaste. Todo aquele metal incandescido, estufado pelo superaquecimento, passaria por cima dele, as esteiras e óleo e sangue correriam sobre ele como os caldos com que uma aranha lambuza sua presa viva. Os pneus rangiam na neve, por trás da janela. O motor parou, ouviu-se uma porta bater depois outra. […] Pronto, pensou Nicolas: estão vindo por minha causa. (p; 234)

Carrère conseguiu nestas duas histórias, dois lados de uma paranoia pesada, construir pedaço a pedaço as psiques de duas personagens que, a despeito de suas perturbação, passam uma impressão de vívida realidade. Mesmo quando o mundo ao seu redor não os trate como reais, como no caso do protagonista de O bigode. Seus tiques e anseios são palpáveis e é muito difícil não sentir uma empatia; esta que torna esta experiência de leitura algo tão angustiante.

Emmanuel Carrère

Emmanuel Carrère


Ficha técnica

  • Tìtulo: O bigode / A colônia de férias
  • Tìtulo original: La moustache / La classe de neige
  • Ano de publicação: 1986 / 1995
  • Edição lida: Alfaguara, 2011. Tradução por André Telles.
  • Número de páginas: 264

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