As brasas

brasasObservação: aqui temos alguns spoilers, o que, se vocês tem interesse em ler o livro, recomendo que evitem. Leia por sua conta e risco!

Enfim, a vingança. Dois homens sentados em um cômodo iluminado apenas pelas chamas hesitantes de candelabros acesos e pelas brasas de uma lareira. As brasas não queimam há quarenta e um anos, o mesmo tempo em que estes dois homens, outrora inseparáveis amigos, não se viam ou sequer se comunicavam. Um monólogo, uma pergunta. E a resposta, onde está?

As brasas, de Sandor Márai, é uma obra que, ao fim da leitura, deixa a impressão de que deve ser melhor aproveitada por aqueles com uma vivência mais longa; uma bagagem existencial de um amor perdido, uma amizade frustrada. Os temas do livro podem ressoar no leitor jovem, mas a sua empatia por excelência deve-se dar com aqueles que, como Atlas, já carregaram o firmamento nas costas. Temas como a solidão e o desajuste; a diferença social, amores correspondidos ou nem tanto. Ciúmes, raiva, e a ação inexorável do tempo, pronto para privar o homem de sua paixão, de matá-lo pouco a pouco conforme ele entende o mundo, até, de fato, apagarem-se as suas brasas.

E, acima de tudo, a força motriz que dá a partida na tragédia: a amizade entre dois homens, uma amizade que pode transcender o amor físico — “com um Eros cujos corpos mais atrapalham do que participam” —, o sentimento mais íntimo possível, compartilhado pelos dois interlocutores, durante sua infância e adolescência. Cursaram o colégio militar, serviram como oficiais do exército. Moraram e conversaram em seu apartamento em Viena. Todavia, um deles era diferente. Não era um homem militar. Essa diferença deixaria cicatrizes.

Quatro décadas se passam. Em um quarto escuro — um raio acabou com a eletricidade; resta apenas a luz das chamas — um monólogo. Em uma catarse que demorou anos sem fim para enfim realizar, nosso protagonista tira a sua vida a limpo, contando o que sabe, o que sempre soube, e no que resultou, mentalmente, o seu exílio do mundo durante todos aqueles anos. Há coisas piores do que a solidão, do que o sofrimento, do que a morte, do que as perguntas sem respostas. Henrik, o general, aprendeu isso durante todo o tempo em que Konrad, seu interlocutor, esteve refugiado nos trópicos. A beleza de As brasas está em suas conclusões, nas respostas que aprendeu, na filosofia que, a duas mãos, desenvolveu por si só. E as perguntas que coloca acabam não sendo tão importantes. Sua esposa, Krisztina, teria lhe traído com seu melhor e único amigo? Este amigo teria tentado matá-lo durante aquela madrugada, durante a caça? Seria inútil perguntar tais coisas, agora que está prestes a ter a sua revanche. A resposta para ambas é óbvia.

As brasas é narrado de modo sublime e sutil, com um ritmo quiçá lento, mas agradável, e vocabulário bom, usado com parcimônia. O começo é devagar, mas sem ser maçante. Entretanto, é apenas para a segunda parte que a beleza começa a amadurecer, que, através de um misto saudável de personalidade, estilo, e metafísica, Márai conseguiu me conquistar como uma obra bem composta. A primeira metade do livro trata da juventude do general, a amizade de Konrad, a vida com Nini, a sua solidão latente e sem legado em um casarão desocupado. A segunda metade, o encontro com o amigo refugiado, a diferença entre os dois, uma conversa à luz das brasas. A vingança metafórica de Henrik, que, como compensação pelas suas décadas de morte simbólica, quer botar tudo a limpo.

E apesar de Henrik se dizer apagado, com as brasas de sua paixão há muito sopradas pela força dos anos, vemos nele outra chama acesa: agora que encontra Konrad, sentimos isso em sua narrativa e em sua longa fala. Uma espécie de silenciosa exultação em sua catarse, em uma espécie de solilóquio em que dialoga com a própria alma, como se seu interlocutor fosse apenas um ouvinte não de todo necessário, em que enfim, em voz filosófica, pontua o fim da vida de ambos. A sua vida adulta, após os trinta e quatro anos, foi apenas um crescendo para este momento, este ápice às avessas, no qual, ao discorrer sobre o que aprendeu sobre a natureza de ambos, sobre a amizade e o amor, sobre os sentimentos conflitantes de um abismo insuperável entre as suas almas, sabe que enfim a sua vida cumpriu o seu propósito final.

Fica a impressão de que a vingança do general, a tal pergunta, não é o foco da sua conversa, mas o encontro em si: o poder, depois de tanto tempo, de discursar — até melhor, “confessar” — suas conclusões, os seus pensamentos, a sua piedade e as suas reflexões a respeito da natureza da amizade, do encontro do homem com seu destino, com a sua pátria, com os seus amores; a inveja e o ciúmes, a riqueza, a pobreza; o amor e o ódio. É nesse sincero discurso, declamado em silenciosa paixão, que As brasas encontra sua apoteose. O clima criado pelo quarto escuro, a imagem dos dois homens, com suas bagagens respectivas, conversando a sussurros, na penumbra da luz das chamas. A volta dos tempos áureos na rememoração narrativa de homens desgastados pelo tempo e pela distância. A beleza e a tristeza. É apaixonante, mas solene.

Sandor Márai compõe em Henrik e Konrad personagens sublimes, retratos da idade anciã que está na espera da morte e espera apenas mais um ato a ser cumprido antes de se entregar à ação inefável do tempo. Retratos estes que se constroem na diferença entre ambos. Na dicotomia entre o militar e o artista, os seus valores e suas aspirações diferentes, que também, no final, acaba influenciando nas inclinações naturais de Krisztina, mais um espírito livre. Na fala do general, vemos não apenas a sua personalidade transbordando em sua visão de mundo, mas também aprendemos sobre Konrad, um homem cujo silêncio diz talvez mais do que suas palavras jamais poderiam expressar.

Apesar de, no final, o leitor possa ser deixado talvez frustrado com as respostas finais — ou sua falta — mais uma vez, esse silêncio diz provavelmente muito mais sobre tudo, e não apenas sobre os dois, mas também sobre o mundo em que vivem, sobre os conceitos de verdade e de vingança tão engenhosamente construídos por Henrik, do que qualquer resposta, fria, sincera, ou passional, poderia ter nos contado. Através desta cisão entre silêncio e discurso, em um único fatal evento, constrói-se um retrato da futilidade não só da vingança, mas da existência de alguém que perdeu tudo que lhe importava. E diz Henrik: não tem a menor importância. Responde Nini: eu sei.

Ficha técnica

  • Tìtulo: As brasas
  • Tìtulo original: A gyertyák csonkig égnek
  • Ano de publicação: 1942
  • Edição lida: Companhia das Letras, 1999. Traduzido por Rosa Freire d’Aguiar.
  • Número de páginas: 172

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